O tema de uma pesquisa recente entre principais artistas e críticos de arte de nossa geração tratou de quem foi o artista mais influente do século XX. Quem venceu? Se você chutou Pablo Picasso — boa tentativa, mas ele ficou em segundo.
Antes de identificarmos o vencedor, vamos refletir sobre a importância do 1º lugar dessa lista.
Os artistas e os críticos de arte de uma geração têm forte influência cultural. Eles decidem que tipo de arte experimentaremos pelo resto de nossas vidas. Eles fazem a arte e a exibem. Eles nos dizem o que ela significa e o que deveríamos tentar experimentar. Alguns participam de comitês que fazem doações e concedem prêmios para encorajar o tipo de arte que pensam ser mais dignas. Os seus julgamentos alocam espaços em museus e galerias prestigiadas, além de influenciar quem ganhará fortunas nos leilões de arte. Muitos também são professores de arte que moldam o pensamento dos estudantes que se tornaram os críticos, designers e artistas que moldarão a estética nas décadas seguintes.
Suas opiniões servem como indicação de quais artistas têm maior relevância cultural, ou seja, de quem poderíamos aprender mais.
E o vencedor é… Marcel Duchamp, especialmente pela sua obra Fonte. À primeira vista, “a Fonte” pode parecer um mictório masculino normal com as letras R. MUTT e os numerais 1917 escritos em sua estrutura. Mas, é claro, devemos investigar mais a fundo, pois Duchamp também era um proficiente jogador de xadrez, e a exposição do urinol foi um movimento arroado no jogo intelectual que disputava com o establishment da grande arte.
O início do século XX marca uma grande ruptura na história da arte. Por séculos, pessoas cultas aprenderam a interpretar a arte visual em termos de três elementos relacionados: o artista faz um objetoque é vivenciado pelo observador.
Duchamp era um talentoso estudante da história da arte, então, se queremos saber qual o significado do urinol, deveríamos perguntar:
- O que ele está dizendo para pensarmos sobre o artista?
- O que ele está dizendo para pensarmos sobre o objeto de arte?
- O que ele está dizendo para vivenciarmos na presença da arte?
Gostamos de pensar nos artistas como seres humanos especiais de grandes habilidades na moldagem de objetos sensórios que expressam suas poderosas emoções e profundezas do pensamento. Mas nosso artista-candidato nesse caso, Marcel Duchamp, foi ao fornecedor de sanitários, comprou algo que estava em exposição, colocou em uma caixa e despachou. Nenhuma habilidade, paixão ou pensamento especial foi necessário para tal.
Gostamos de pensar nos objetos de arte como objetos especiais, únicos e insubstituíveis que merecem cuidado especial em nossas casas, espaços de trabalho e museus. Mas o objeto de arte nesse caso, o urinol, é um pedaço de porcelana industrial que foi produzido em massa numa fábrica qualquer, assim como milhares de outros itens idênticos em banheiros ao redor do mundo.
Gostamos de pensar na experiência estética como algo que eleva e enriquece nossos sentidos, emoções e intelectos, mesmo quando foca nossa atenção no obscuro e no trágico. Mas quando nos deparamos com o urinol, experimentamos perplexidade e nojo. Em um espaço devotado à arte, temos que lidar com urina, urinação e eliminação de resíduos humanos.
De uma forma geral, a Fonte de Duchamp é um conjunto de declarações sobre a arte: o artista não é nada especial, o objeto de arte não é nada especial, e ao menos que você gosta de se enojar, a arte não vale o seu tempo. Em outras palavras, urine na arte.
Tal declaração sobre a arte é verdadeiramente profunda, e dada a trajetória pós-Duchamp da arte moderna, o lugar de Marcel Duchamp no topo da lista é bem merecido.
Mas é importante notar aqui que Duchamp claramente não considerou seu urinol uma obra de arte. Ridicularizar aqueles críticos que se mascararam de intelectuais tentando explicar porque deveríamos admirar a Fonte — contornos audaciosos! Linhas puras! — Duchamp disse, “eu joguei uma garrafa e um urinol nas suas caras como desafio, e agora eles as admiram pela sua beleza estética”.
Então, se você se deparar com uma crítica elogiando os méritos artísticos da Fonte, sinta-se à vontade para rir com Duchamp da total falta de foco da pretensão do crítico. A alegação de Duchamp é que o urinol não é arte — e que a inabilidade dos pensadores mais profundos do mundo da arte dizerem por que esse não é o sintoma mais claro de seu fracasso intelectual.
E esse é ainda o desafio da Fonte. Fazer uma declaração sobre arte não é a mesma coisa fazer arte. Então, nós podemos concordar com Duchamp que seu gesto simbólico funcionou como um tapa de luva aqueles interessados em descobrir qual é o limite entre arte e não arte.
Mas, à parte da questão de definir arte, existe ainda a questão sobre o conteúdo da Fonte: Por que Duchamp quis fazer aquela declaração sobre a arte? Se o seu ponto fosse somente sobre readymades, então, na loja de materiais de construção, ele poderia ter adquirido uma torneira de cozinha ou uma ducha de chuveiro, enviando-a como sua obra. O niilismo sobre a arte implícito no simbolismo “Urine em você” no urinol é chocante. E o fato de que o mundo da alta arte abraçou Duchamps como principal representante dos seus últimos 100 anos fala diretamente da guinada negativa que ela tomou há 100 anos. Veja meu artigo “Por que a arte tornou-se feia” para elementos do pessimismo filosófico, religioso, político e cientifico que se uniram na virada do século XX enquanto Duchamp, Picasso e outros futuros artistas estavam chegando à velhice.
O urinol original de Duchamp está perdido, mas 17 réplicas cuidadosamente produzidas foram feitas em 1964. Uma das réplicas está agora no Tate Museum em Londres. Amigos do Tate pagaram uma quantia não divulgada por ele em 1999. Aquela Fonte está localizada em uma construção imponente em algum edifício caríssimo de Londres (ao lado do Globe Theatre de Shakespeare), e é protegida pelo melhor sistema de segurança que o dinheiro pode comprar. Isso permite que milhares de pessoas, anualmente, passem pela Fonte e tirem fotos.
Mas ocasionalmente a Fonte recebe a atenção que merece. Às vezes, durante os horários regulares do museu, artistas performáticos aparecem e fazem suas próprias fontes, por assim dizer, abrindo o zíper e urinando na Fonte de Duchamps. Os funcionários do Tate não gostam muito. Mas, sem dúvida, Marcel ficaria orgulhoso dos seus herdeiros espirituais.
* * *
“O artista mais importante do nosso século” Por Stephen Hicks. Tradução de Matheus Pacini. Revisão de Russ Silva. Artigo Original no “The Good Life”. Visite EveryJoe.com para ler os últimos artigos de Stephen Hicks.
Stephen Hicks é o autor do livro Explicando o Pós Modernismo e Nietzsche and the Nazis.