Um antigo mito fala de um jovem pobre que encontrou um anel mágico. Seu nome era Giges. Ele era um pastor, responsável por apascentar as ovelhas do vilarejo enquanto pastavam nas colinas. Seu trabalho era solitário, mal pago, e na maioria das vezes, ele cheirava a ovelha.
Certo dia, em uma caverna, Giges encontrou um anel com uma pedra preciosa. Ele colocou o anel em seu dedo e descobriu algo fascinante: quando virava o anel para dentro da palma, ele ficava invisível. Quando virava o anel para fora, ele se tornava novamente visível.
Você pode prever o que aconteceu depois.
Sucedeu uma onda de crimes. Giges abandonou as ovelhas e retornou ao vilarejo. Coisas caras foram roubadas. Mulheres foram estupradas. Pessoas foram assassinadas. Não havia testemunhas.
E a ambição de Giges não parava por aí — roubar, enganar e matar até chegar ao topo. Eventualmente, ele assassinou o rei, assumiu o trono, e tornou a ex-rainha, sua rainha.
Que terrível, não é?
Mas se você tivesse o anel de Giges, você não faria o mesmo?
Antigos pensadores de Heródoto a Platão usaram o mito de Giges para meditar sobre a ética política. Giges, argumentavam, não é um indivíduo peculiar — ele é um homem comum e um substituto para a ação humana. O anel é uma metáfora para o poder — o poder de fazer o que você quiser sem consequências. E o que Giges deseja? Ele deseja o que qualquer ser humano deseja — riqueza, sexo, vingança e muito mais.
O poder de invisibilidade do anel significa que ele pode agora satisfazer seus desejos mais íntimos da forma mais fácil possível. Ele não precisa trabalhar duro por dinheiro. Ele não precisa flertar para conquistar mulheres. Ele não precisa de estratagemas para matar seus inimigos.
Assim, na matemática da filosofia: natureza humana + poder = crime.
Os seres humanos, segundo o mito, são por natureza criaturas de paixões predatórias — orgulho, luxúria, cólera e mais. Mas, na medida em que agimos em nossas paixões mais fortes tornamos a vida em sociedade algo brutal ou impossível.
O mito propõe um novo desafio ao ideal de uma sociedade livre. O poder do anel concedeu liberdade a Giges — a liberdade para fazer o que desejasse. Mas a lição parece ser que tal liberdade é socialmente destrutiva. A liberdade solta a natureza humana, e a natureza humana é socialmente corrompida. Então, se quisermos viver em uma sociedade pacífica e produtiva, então a liberdade é o inimigo que devemos combater.
O desafio de Giges é diferente de outros desafios à liberdade que já consideramos
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Que as condições ambientais tais como os recursos escassos nos colocam uns contra os outros, e a liberdade, portanto, significa uma sociedade de competição feroz. Veja “A ética do bote salva-vidas, escassez e conflitos”.)
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Ou que a liberdade é um tipo de poder, mas o poder nos corrompe e transforma pessoas de outra forma decentes em monstros. Veja “O poder não corrompe — é o caráter o que realmente importa”.)
O mito de Giges diz que não são forças exteriores como a escassez ou o poder que nos fazem fazer coisas ruins. Em vez disso, a corrupção já está dentro de nós. A natureza humana é dominada por desejos que nos tornam incapacitados para a liberdade (Veja também “Conservadores contra o capitalismo de livre mercado”.)
Giges é um mito grego, mas temos versões similares dessa história em outras culturas mediterrâneas.
No livro do Gênesis, fonte comum para as três principais religiões do mundo ocidental, aprendemos que Adão e Eva, no seu primeiro ato de liberdade, roubou o fruto. Na geração seguinte, Cain matou Abel. As gerações subsequentes, livres para tomarem suas próprias decisões, mentiram, estupraram, roubaram, massacraram e assim por diante — até que Deus retornou na geração de Noé. Deus viu a corrupção e a devastação que os humanos tinham trazido e decidiu exterminá-los, começando do zero. Mas mesmo na nova era, a natureza humana se perdeu, e novamente, levou aos mesmos resultados destrutivos. Daí, a doutrina do Pecado Original.
Dos tempos antigos até hoje, nossa visão pessimista da natureza humana tem sido uma fonte regular de ataques à sociedade livre.
“O homem é muito mal para ser livre”, escreveu Joseph de Maistre no século XIX. “Homo homini lúpus” (“O homem é o lobo do homem”), escreveu Sigmund Freud no século XX. “Crueldade e conflito são traços humanos básicos”, concorda o filósofo John Gray, no século XXI.
Então, de acordo com os defensores dessa repugnante visão da natureza humana, o que nós deveríamos fazer para tornar possível a convivência social?
Retomando a matemática da filosofia, concluímos que: se a natureza humana combinada ao fortalecimento da liberdade leva a resultados negativos, então, para evita-los, temos que mudar a natureza humana ou tirar a liberdade das pessoas. Como não podemos mudar a natureza humana, o argumento que normalmente segue é que temos de sufocar as manifestações negativas.
Uma forma de fazê-lo é através do medo. Antes de encontrar o anel, Giges não agiu sobre suas paixões porque tinha medo de ser descoberto. Contudo, o anel eliminou tal medo, e suas paixões tomaram o controle. Então, para resolver o problema, temos que assegurar que os humanos permanecerão da forma que Giges era antes do anel: relativamente fracos e com medo de serem descobertos pelas autoridades.
No âmbito secular, podemos assegurar que a polícia e os tribunais tenham maiores poderes de vigilância e de punição. No âmbito religioso, podemos tentar fazer as pessoas acreditarem em um Deus que está sempre alerta e que as punirá severamente. “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria(…),” estre trecho de Provérbios 10-11, por exemplo. Devemos incitar o medo das forças autoritárias, sejam elas seculares ou religiosas, como um contragolpe necessário à natural depravação humana.
Medo de poderes externos como a polícia ou deuses é uma forma de controle, contudo, podemos também nos utilizar de controles internos ao tentar ensinar pessoas a autoconterem. Em vez do medo político, podemos utilizar a culpa moral.
Se o problema é a ganância, por exemplo, podemos desde o primeiro dia ensinar uma lição moral às crianças: que o amor pelo dinheiro é a raiz de todo o mal. Quando eles naturalmente passam a desejar dinheiro, uma batalha interna começara entre o seu desejo por dinheiro e sua crença adquirida que deseja-lo é imoral. A tática da ganância não funcionará perfeitamente, contudo, o sentimento de culpa gerado em certa medida as levará a suprimir sua ganância.
Se o problema for a luxúria, então ensina a abstinência sexual como um ideal moral. É claro, não funcionará perfeitamente, mas a culpa sexual reduzirá a luxúria. Se o problema for a raiva, então ensine que um indivíduo deveria sempre perdoar. O desejo natural por vingança é a moralidade ensinada do perdão lutará fortemente dentro de cada um de nós, e se nos sentirmos culpados por buscar vingança, então, é menos provável que a busquemos.
Então, se o mito de Giges, Eva, e Cain capturam uma verdade profunda sobre a natureza humana, portanto, parece que temos somente duas soluções: precisamos de uma moralidade da culpa ou de uma política do medo — ou ambas.
Existe uma forte tendência na história: o pessimismo sobre a natureza humana é quase sempre relacionado com moralidade e política autoritárias. O contrapositivo também é verdadeiro: sistemas políticos e morais liberais são quase sempre baseados no otimismo sobre a natureza humana.
Eu sou um liberal¹ e um otimista — o que significa que devo responder ao poderoso mito de Giges. Esse será o assunto que tratarei no próximo artigo.
¹ No sentido filosófico da defesa da liberdade humana, e não no sentido contraditório e contemporâneo utilizado nos Estados Unidos, o qual prega uma mistura de liberdades e controles.
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“Somos perversos demais para a liberdade?” Por Stephen Hicks. Tradução de Matheus Pacini. Revisão de Russ Silva. Artigo Original no “The Good Life”. Visite EveryJoe.com para ler os últimos artigos de Stephen Hicks.
Stephen Hicks é o autor do livro Explicando o Pós Modernismo e Nietzsche and the Nazis.