As autoridades alemãs permitirão a reimpressão da obra Mein Kampf (tradução oficial, Minha Luta) de Adolf Hitler, após décadas de censura.
Pessoas decentes podem argumentar que o livro é muito perigoso para ser publicado. Mas o fato é que Mein Kampf é muito perigoso para não ser publicado.
O grande medo é que as ideias de Hitler não estejam mortas e que seu livro precipite outro movimento social terrivelmente patológico. O nacionalismo e o socialismo ainda apelam a muitos. As combinações das duas ideologias atraem novos adeptos a cada dia na Europa e ao redor do mundo (veja O renascimento do nazismo na Europa — não é somente racismo).
Mein Kampf está disponível em muitas edições, em muitos idiomas e até mesmo online. Portanto, o furor relativo a sua reimpressão está mais ligado aos próprios alemães: eles podem lidar com isso?
Uma de muitas piadas antigas diz que um alemão perguntou ao outro: “Quantos poloneses são necessários para trocar uma lâmpada?” O outro alemão respondeu: “Eu não sei. Vamos invadir a Polônia para descobrir!”.
É sempre engraçado cutucar a reputação histórica alemã. Mas já se passaram três gerações desde o fim da II Guerra Mundial. Mudanças culturais importantes ocorreram na Alemanha com respeito ao militarismo, autoritarismo, antissemitismo e outros elementos existentes nos ideais nacional-socialistas. Existe muita evidência de que a Alemanha de hoje está muito acima da média em civilidade e decência. Isso significa que o “controle cultural” pós-nazismo pode ser abolido.
Mesmo além do caso particular da Alemanha, existe um ponto importante e geral sobre a proibição de, até mesmo, as ideias mais repulsivas: a censura enfraquece nossa habilidade de combatê-las.
Levi Salomon, palestrando para o Jewish Forum for Democracy and Against Anti-Semitism (Fórum Judaico para a Democracia e Contra o Antissemitismo, tradução livre) sediado em Berlim, opõe-se à reimpressão do livro Mein Kampf: “Esse livro está fora da lógica humana”.
Talvez isso seja verdade. Mas o livro não está fora da experiência humana. Nós devemos entender a “lógica” das crenças nacional-socialistas, não importando o quão ilógicas possam ser na realidade. Estas crenças continuam a ter um apelo psicológico e social poderoso para muitos, então é crucial que toda a geração saiba exatamente quais são, por que atraem tantas pessoas — e como combatê-las.
Os nazistas não eram somente alguns caras loucos que, por um golpe de sorte, chegaram ao poder. Por muito tempo uma visão caricatural do nacional-socialismo tomou conta da opinião pública.
Mas considere uma questão. Anos antes de os nazistas tomarem o poder, 3 vencedores do prêmio Nobel — Johannes Stark, Gerart Hauptmann e Philipp Lenard — apoiavam os nazistas.
Também antes da chegada dos nazistas ao poder, muitos intelectuais com doutorado das melhores universidades alemãs escreveram livros que apoiavam a ideologia nacional-socialista. Entre eles estavam o historiador Dr. Oswald Spengler, que publicou seu best-seller The Decline of the West (em português, A Decadência do Ocidente) em 1918. Spengler era o mais famoso intelectual alemão da década de 1920. O teórico jurista Dr. Carl Schmitt escreveu livros que ainda são reconhecidos como clássicos do século XX. O teórico e cientista político Moeller van den Bruck publicou The Third Reich (O Terceiro Reich) em 1923, o qual foi sucesso de vendas durante a década de 1920. E o filósofo Dr. Martin Heidegger, considerado por muitos como o detentor da mente filosófica mais original do século, apoiou ativamente os nazistas tanto na teoria como na prática.
Muitos dos gênios apoiadores do nacional-socialismo eram extremamente cultos e se consideravam discípulos de George Hegel, Karl Marx e Friedrich Nietzsche — e como responsáveis pelo trabalho vital e idealista de aplicação daquelas filosofias abstratas à política do mundo real.
Então, o problema não é somente Adolf Hitler. E se formos censurar todos os escritos que levaram ao nazismo, a lista se torna longa.
Também é um fato relevante que muitos milhões de alemães votaram no Partido Nazista. Na decisiva eleição democrática de 1933, os nazistas venceram com 43% dos votos — mais que o total dos outros três partidos combinados. (Em segundo lugar, estavam os Socialistas e em terceiro, os Comunistas, o que nos fala muito do clima político e intelectual da época.)
O sucesso eleitoral dos nazistas não foi também produto de um conjunto de ideias contidas somente em livros. Na construção do seu movimento, os nazistas utilizaram princípios modernos de marketing, logística e administração. Eles aplicaram novas teorias da psicologia e da sociologia para formar um movimento central de centenas de ativistas devotos, expandindo-se a um movimento de massa de milhões de seguidores. Não obstante, não queremos censurar livros relacionados à logística aplicada, marketing ou psicologia social.
A seguir são propostas algumas perguntas difíceis: Por que tantos intelectuais concordavam com as ideias nacional-socialistas? Por que tantos voluntários, doadores e profissionais devotaram suas energias para a criação de um notável movimento político? Por que milhões de cidadãos alemães votaram — com frequência de forma entusiasta — nos nazistas? Eram todos simplesmente estúpidos / depravados / insanos?
Não, não eram. Gostando ou não do fato, o nacional-socialismo incorpora uma profunda filosofia de vida — e é isso que explica seu poder. Pode-se argumentar que a filosofia nazista não é lógica e racional. Eu concordo. Ainda assim, poucas filosofias são. Também pode-se argumentar que o nazismo, se seguido à risca, leva à psicose. Concordo novamente. Mesmo assim, isso se aplica também a muitas outras filosofias.
Mas tampouco é lógico, racional ou sadio ignorar um conjunto de ideias que continua a inspirar movimentos ao redor do mundo. Suprimir ideias perigosas é muito mais perigoso que lutar contra elas abertamente.
Uma sociedade livre pode funcionar somente se a maioria de seus membros entender quais os princípios que a norteiam e a razão pela qual são melhores que as alternativas. Isso pressupõe que eles sabem quais são alternativas, obviamente.
Portanto, não existem atalhos em nossa educação cultural continuada. Todas as gerações devem discutir e debater as grandes ideias — verdadeiras ou falsas, conhecidas e possíveis, saudáveis ou perigosas — tornando-se intelectualmente preparadas para defender e expandir a civilização liberal.
Às vezes, o impulso à censura foca no simbolismo de permitir que livros malignos sejam publicados. Não censurar Minha Luta, por exemplo, é uma declaração, pelas autoridades, de que consideram as ideias nacional-socialistas dentro do limite da opinião aceitável.
Contudo, nós deveríamos lembrar que a sociedade livre rejeita a ideia de que é função das autoridades decidirem quais opiniões são aceitáveis. Esse é nosso trabalho, de cada um de nós, individualmente.
Em sua opinião dissidente em um caso clássico de censura americana, o juiz Potter Steward fez uma observação pertinente: “A censura reflete a falta de confiança de uma sociedade em si mesma”.
Existe um importante simbolismo intrínseco ao encorajamento da livre expressão: nós podemos lidar com isso.
Então, vamos fortalecer tal autoconfiança. Nós temos a inteligência e o caráter para lidar com os Hitlers potenciais, assim como seus talentosos teóricos.
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“Republicar “Mein Kampf” é a decisão correta?” Por Stephen Hicks. Tradução de Matheus Pacini. Revisão de Russ Silva. Artigo Original no “The Good Life”. Visite EveryJoe.com para ler os últimos artigos de Stephen Hicks.
Stephen Hicks é o autor do livro Explicando o Pós Modernismo e Nietzsche and the Nazis.