“As pessoas são escória.” “A humanidade é um deserto moral.” “Eu tenho vergonha de ser humano.”
Sempre quando os cínicos se expressam, fico tentado a retrucar que a filosofia é uma autobiografia e que eles deveriam colocar suas afirmações na primeira pessoa: “Eu sou a escória.” “Eu sou um deserto moral.” “Eu tenho vergonha de ser quem sou.”
Certa vez, um colega de profissão aceitou meu desafio. Ele era um conservador religioso, e estávamos debatendo a natureza humana. Ele era pessimista, argumentando que os humanos são pecadores, movidos por desejos obscuros e antissociais, além de não confiáveis. Ele era um sujeito grande que praticou esportes agressivos, como futebol americano, na faculdade. A conversa voltou-se para mulheres e ele se recordou de uma antiga namorada. Ela era ingênua, ele pensava, por querer conhecê-lo de verdade. Ele disse, “Eu sou um homem de 1,90 e 110 kg. E ela quer que eu expresse meus sentimentos?”
O cinismo não é uma alegação jornalística de que existem muitas pessoas desprezíveis na sociedade. É uma alegação geral de que a natureza humana é repulsiva e nociva. (Veja Somos perversos demais para a liberdade?)
Na tradição religiosa ocidental, o cinismo com respeito à humanidade é mais fortemente expressado na doutrina incoerente, mas influente, do Pecado Original. Santo Agostinho, a principal voz da fé por mil anos, argumentou que “Ninguém está livre do pecado, nem mesmo a criança cuja vida conta só um dia na Terra”.
Se questionarmos a origem deste Pecado, temos que localizá-la no corpo ou na alma. De acordo com a perspectiva religiosa/dualista da natureza humana, tal como lemos, por exemplo, no livro do Gênesis, Deus pegou a poeira do chão, transformou-a em um corpo humano e soprou alma no seu interior. Os primeiros humanos, Adão e Eva, também cometeram os primeiros pecados, e depois de muitas gerações, ainda nascemos infectados com o pecado.
Inicialmente, é tentador situar o pecado dentro do corpo, já que é dali que advêm os impulsos fisiológicos por alimento, sexo e bebida. Nossos corpos são também tudo que herdamos pela reprodução sexual de nossos pais — que receberam seus corpos de seus pais e assim por diante, regressando até Adão e Eva. Por outro lado, cada alma individual é criada do zero por Deus, a sua imagem e semelhança. Portanto, a alma é pura, e é o corpo que é a fonte das corrupções da luxúria, gula e assim por diante.
Contudo, pensadores importantes na tradição religiosa, entre eles Agostinho, quase sempre negaramque o corpo é a fonte do pecado. Em vez disso, o pecado é algo que a alma faz ao se entregar a coisas que ela sabe serem erradas. Na sua forte e bem escrita autobiografia, Confissões, Agostinho nos diz que quando evitava seus estudos, quando roubava uma pera, quando mantinha relações sexuais com uma mulher — o pecado estava em saber que essas coisas eram proibidas e, mesmo assim, fazê-las. Quando ele roubou a pera, por exemplo: “Não me importei em desfrutar do que roubei, pois meu prazer estava no roubo e no pecado, isto é, no ato em si”.
Nós não culpamos um esquilo por “roubar” uma noz, já que o esquilo não tem “consciência” do que está fazendo. Agostinho tinha “consciência” — e deseja que nós ouçamos o eco do roubo original no Jardim do Éden. Eva sabia que o fruto da árvore era proibido, mas ela o consumiu da mesma forma. Isto é, sua alma era corrupta, assim como foi sua alma que fez a escolha de fazer a coisa que ela sabia ser errada.
Então, devemos concluir, a fonte do pecado está na alma. E aqui está o problema: a alma é criada diretamente por Deus, então, não pode ser originalmente corrupta. Diz-se que Deus é um ser perfeito, logo, tudo que Deus cria deve ser perfeito. É impossível que um ser perfeito criasse uma alma malvada — muito menos bilhões delas.
Então, onde pode estar a fonte da maldade humana? E como ela é transmitida de geração em geração, de tal forma que todos nós somos ainda responsáveis pelas transgressões de Adão e Eva? Nem o corpo, nem a alma são possíveis candidatos, logo a explicação tradicional parece incoerente.
Uma explicação suplementar à incoerência é culpar o livre arbítrio. Deus efetivamente fez a alma perfeita, e ele a dotou de livre arbítrio. O livre arbítrio é o tipo de poder — a capacidade de escolha entre alternativas. Dessa forma, não podemos culpar Deus por nos dar a capacidade de escolher o abuso.
Todavia, a incoerência não termina, dado que o suposto livre arbítrio dado por Deus é tão fraco que não nos protege do pecado. Eva pecou gravemente, assim como todas as pessoas da geração de Noé, de Agostinho, até os dias de hoje. Deus sabe disso; ainda assim, ele continua a criar almas de pouca força de vontade que Ele sabe que irão somente escolher o mau, o prejudicial e o pecado em detrimento do bem.
No final das contas, chegamos ao mesmo ponto que os pensadores da tradição religiosa chegaram, o qual é a asserção de que a doutrina do Pecado Original é um artigo de fé, um dogma — no qual se deve acreditar, mas não necessariamente entender. O que devemos supostamente fazer é aceita-lo, admitindo nossa fraqueza e indignidade, submetendo e obedecendo às autoridades superiores.
Na era moderna, a influência da abordagem religiosa/dualista diminuiu entre intelectuais e em grande parte do público em geral. A fé carrega menos peso em uma era comprometida com a evidência e a lógica. O apelo à alma tem pouco poder explanatório dado o poder das ciências físicas. E as demandas por obediência são uma afronta aos amantes da liberdade e da auto-responsabilidade.
Mas se nos afastarmos da explicação religiosa/dualista da natureza humana, então qual é alternativa? Se não existem almas, então isso não implica que os humanos são somente animais? Animais, nós (modernos) frequentemente ensinamos, são o produto de um longo caminho de desenvolvimento evolucionário e o resultado de forças materiais — as forças da química orgânica e da biologia como moldadas pelas forças físicas da geologia e do clima. Os humanos são parte daquela história e não eximidos dela. Eles podem ter alcançado o topo da cadeia alimentar, mas o que lhes permitiu chegar lá foi o seu poderoso instinto predatório.
Mas se rejeitarmos a explicação religiosa/dualista da natureza humana e a substituirmos pela explicação materialista/predatória da natureza humana, então ainda temos uma compreensão pessimista da condição humana. “Natureza, rubra nos dentes e nas garras” é dificilmente uma fundação para a visão otimista de que os humanos possam manejar a liberdade total e trabalhar em conjunto para o desenvolvimento de arranjos sociais mutualmente benéficos.
No meu próximo artigo, tratarei do desafio proposto pelo materialismo reducionista e seu entendimento da razão, emoções e impulsos humanos.
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“O ser humano é inerentemente mau?” Por Stephen Hicks. Tradução de Matheus Pacini. Revisão de Russ Silva. Artigo original no “The Good Life”. Visite Publicações em Português para ler os últimos artigos de Stephen Hicks.
Stephen Hicks é o autor do livro Explicando o Pós Modernismo e Nietzsche and the Nazis.
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