Muitas pessoas espertas — incluindo Thomas Friedman no The New York Times, Naser Khader no Newsweek, John Lloyd no The Jerusalem Post, Ayann Hirsi Ali no The Wall Street Journal — estão esperando que algum tipo de Reforma ocorra no Islã. Alguns estão clamando por um Martin Luther King islâmico.
Desculpe, mas não. O Islã precisa de reformismo, mas definitivamente não de uma Reforma.
Antes de qualquer coisa, é importante entender as lições da história. Primeiro, contra o que os ativistas da Reforma estavam lutavam? Durante a Renascença, a religião dominante, católica, tinha se tornado mundana. Seus pensadores leram os naturalistas gregos e romanos e começaram a imitá-los. A busca por sexo, dinheiro e poder substituiu os ensinamentos cristãos de castidade, pobreza e obediência. Consequentemente, abusos ocorreram em todos os níveis da hierarquia da Igreja — de orgias no Vaticano à politicagem e guerras sangrentas, até à venda grosseira de indulgências para pagar por todas essas atitudes excêntricas.
Assim, os principais protestantes — Lutero, Calvino, Zwingli e outros — estavam pedindo que a Europa cristã abandonasse seus comportamentos inapropriados, que se purificasse, retornando ao Cristianismo fundamental.
Mas o que é o Cristianismo fundamental? Martinho Lutero é o mais famoso reformador, portanto, vamos avaliar alguns temas luteranos. Lutero condenava a razão como a “prostituta do Diabo”. Ele detestava Aristóteles — aquele grego racional e mundano — como um “demônio”, um “mentiroso”, e uma “besta” cujos seguidores são “gafanhotos, lagartas, sapos e piolhos”.
Lutero pedia que voltássemos às Escrituras para aprender o verdadeiro significado da fé — especialmente pela compreensão da lição presente na exigência que Deus fez a Abraão (sacrifício de seu próprio filho, Isaac). Lutero exaltou a disposição de Abraão a obedecer cegamente, notando que a fé verdadeira “torce o pescoço da razão”. Ele concordava com os críticos de que o Cristianismo requer que um indivíduo creia em muitas absurdidades: “Quem quiser ser cristão deve arrancar os olhos da razão”.
Lutero também pedia a pena de morte para aqueles que emprestassem dinheiro a juros, urgia que as sinagogas judaicas fossem incendiadas e reclamava que “os judeus enriqueciam pelo sangue e suor dos alemães, sugando-os até os ossos, condenando-os à pobreza”.
O reformador João Calvino obteve poder suficiente em Genebra para implementar estritos códigos de vestimenta, especialmente para mulheres. Ele censurou escritos que considerou não propriamente cristãos e baniu a dança, canto e o teatro. Ele tornou a presença na Igreja compulsória e demandou que todos os pais nomeassem seus filhos somente com nomes que remetessem ao Antigo Testamento. Frequentemente, Calvino recorria à tortura e, se necessário, execução daqueles — como Miguel Servet – que considerava hereges.
Mesmo o mais moderado Huldrych Zwingli argumentou que o individuo deveria viver pela Escritura e que qualquer pessoa que não o fizesse “era um assassino de almas e um ladrão”. No Conselho de Zurique, Zwingli expulsou aqueles que não praticavam o batismo de recém-nascidos e declarou que “nenhum cristão deveria ser ofendido ou escandalizado por ninguém; caso o fosse, essa pessoa estaria condenada à morte” — deixando em aberto que tipo de castigo deveria ser dado.
O ponto histórico é que a Reforma foi um movimento que se afastou da razão, do mundano e da tolerância. Prefiro católicos corruptos a reformadores fundamentalistas.
Portanto, espero que aqueles que clamam por uma Reforma do Islã tenham outra coisa em mente.
Uma forma melhor de expor esse ponto é que o Islã necessita são as consequências não intencionais da Reforma. O que os Reformadores tinham em mente era o oposto do mundo moderno naturalista e tolerante, mas este mundo foi em parte resultado das ações dos Reformadores.
Os Reformadores realmente ajudaram a quebrar o monopólio do Catolicismo sobre a cultura europeia nos anos 1500. Grande parte da Europa setentrional separou-se do Catolicismo. Cada nação tomou uma direção distinta. E muitas daquelas novas direções foram importadas pelas nações que permaneciam predominantemente católicas. Os próprios Reformadores protestantes queriam impor uma versão simples do Cristianismo sobre todas as pessoas, mas eles desencadearam forças que criaram um espaço social para que alternativas se desenvolvessem.
Além disso: embora os Reformadores fossem uniformemente intolerantes, um dos seus princípios teológicos levou involuntariamente à adoção geral da tolerância.
Os Reformadores argumentavam que todo o indivíduo deveria ter uma relação direta e pessoal com Deus — em contraste à visão católica de que a relação de um indivíduo com Deus é indireta e mediada através da hierarquia da Igreja. Mas para um indivíduo ter uma relação direta com Deus, os Reformadores argumentavam, ele ou ela necessita conhecer a Palavra de Deus. Isso significa que todas as pessoas precisam ser capazes de ler a Bíblia, isto é, precisam ser alfabetizadas.
Consequentemente, os Reformadores propuseram campanhas vigorosas de alfabetização e se empenharam fortemente na tradução da Bíblia do latim para todas as outras línguas faladas na Europa.
Tal fato ajudou o “coelho” intelectual a sair da cartola, por assim dizer. Tão logo os indivíduos começaram a ler a Bíblia por conta própria, eles formularam diferentes julgamentos quanto ao seu significado. Eles então debateram uns com os outros sobre estas diferentes interpretações. Consequentemente, a sua capacidade de raciocínio e debate aumentou e a Europa tornou-se mais racional.
É claro, a transição foi difícil — de sentimentos feridos a cismas violentas — com os crentes de diversas vertentes tentando impor sua interpretação, às vezes, recorrendo à força.
Eventualmente, todavia, as pessoas perceberam que se cada indivíduo era livre para estabelecer sua própria relação com Deus e seguir seu próprio julgamento, o respeito deveria prevalecer. Isso significava que elas tinham que tolerar diferenças de opinião. Além disso, depois de uma ou duas gerações de conflitos religiosos brutais, um bom número de pessoas racionais perceberam que métodos violentos de resolução de conflitos eram insustentáveis.
Uma cultura de tolerância “viva e deixe viver” emergiu na Europa.
Qual é a situação do Islã? O Islã já teve sua “Reforma”. O Islã já teve muitos indivíduos poderosos dispostos a integrar o Islã moderado às alternativas seculares do Oeste. E, por um século, ele certamente teve muitos fundamentalistas clamando por um retorno a um Islã purificado.
As nações islâmicas já alcançaram taxas de alfabetização significativamente maiores que aquelas da Europa dos tempos da Reforma nos idos de 1500 e 1600, permitindo à maioria ler o Corão por si própria assim como ter acesso a uma literatura ampla de fontes ocidentais e orientais.
E mesmo nas nações oficialmente islâmicas, existem muitos bravos intelectuais lutando em prol de valores liberais e humanistas, embora sejam normalmente uma minoria e frequentemente fora dos corredores do poder.
O ponto é que o Islã já é um estado pós-Reforma, não pré-Reforma. Dessa forma, precisamos buscar outros exemplos análogos na história.
Tenho uma sugestão melhor:
Na Europa, todos os ingredientes culturais do Renascimento e da Reforma foram reunidos entre os anos 1400 e 1600, culminando no Iluminismo nos anos 1700 na Europa Ocidental. O mundo islâmico é onde a Europa estava antes de 1700 — em transição e necessitando tomar uma decisão crucial. Ele tem todo o histórico do Renascimento e da Reforma, todavia, como o filósofo David Kelley argumenta, ainda não alcançou seu Iluminismo.
O mundo islâmico já tem muitos Luteros, Calvinos e Zwinglis. Contudo, ele ainda não produziu seus Galileus, Lockes e Voltaires. Isto quer dizer, ele precisa de um Iluminismo, não mais Reforma.
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“O Islã precisa de uma reforma?” Por Stephen Hicks. Tradução de Matheus Pacini. Revisão de Russ Silva. Artigo Original no “The Good Life”. Visite Publicações em Português para ler os últimos artigos de Stephen Hicks.
Stephen Hicks é o autor do livro Explicando o Pós Modernismo e Nietzsche and the Nazis.