Em nossa era de economia keynesiana sob efeito de esteróides, devemos perguntar: quão próxima está a prática keynesiana da teoria keynesiana original?
A principal alegação que levou John Maynard Keynes à fama foi a sua defesa de gastos via déficit público como uma ferramenta de recuperação econômica. Em uma economia em depressão, segue o argumento, o governo deveria gastar o que não tem. Tal ação estimularia a demanda, o que, por sua vez, estimularia a oferta. Uma vez que a economia voltar aos trilhos, a arrecadação de impostos aumentará, e essa receita subsequente poderá ser utilizada para reduzir o déficit. Assim, no médio prazo, o balanço contábil do governo tranquilamente alcançará o equilíbrio.
Antes de Keynes, alguns economistas tinham recomendado o uso de desta estrategia para responder a declínios na atividade econômica. A originalidade de Keynes foi aplicar tal ferramenta de política dentro do contexto de uma teoria econômica geral.
Contudo, desde a Teoria Geral de Keynes, publicada em 1936, nós passamos por décadas de déficits e aceleração do endividamento do governo. Então, o que deu errado?
Reli a obra seminal Democracy in Deficit: The Political Legacy of Lord Keynes (Democracia no deficit: O legado político de Lord Keynes) de James Buchanan e Richard Wagner. Buchanan recebeu o prêmio Nobel em 1986 pelo pioneirismo na teoria da escolha pública ou “política sem romance”, como ele a chamava.
Democracia no Déficit é uma leitura essencial para todos os pensadores políticos, e dois argumentos deste livro sobre a avaliação da responsabilidade de Keynes parecem-me deveras importantes.
Em primeiro lugar, Keynes era um elitista político, não um democrata. Buchanan e Wagner citaram o biógrafo R. F. Harrod sobre a suposição keynesiana “de que o governo da Grã-Bretanha deveria e poderia continuar a estar em mãos de uma aristocracia intelectual pelo uso de métodos de persuasão”. Keynes pensou, talvez, que suas prescrições não deveriam ser aplicadas em uma democracia. Só a uma aristocracia de políticos inteligentes e disciplinados poderiam ser confiadas as políticas keynesianas.
Afinal de contas, qual perfil de político é democraticamente eleito com regularidade? Eles não tendem a ser mais astutos que inteligentes, mais pilantras e menos disciplinados? Então, o keynesianismo no contexto democrático levará a gastos mal direcionados e sem controle — e, por incrível que pareça, aqui estamos. Contudo, não podemos culpar o Keynes aristocrático pelo keynesianismo democrático. Logo, temos que transferir a culpa para seus seguidores que abusaram do seu sistema, aplicando-o de forma incorreta.
Em segundo lugar, a Teoria Geral, publicada em 1936, era em parte uma resposta à Grande Depressão. Medidas governamentais emergenciais eram necessárias, seguia o argumento. Mas aquelas medidas emergenciais deveriam ser suspendidas tão logo a situação de emergência tivesse passado. Então, uma década depois — ao final da Grande Depressão e da II Guerra Mundial — a teoria de Keynes pregava o fim dos gastos via déficit. Keynes morreu em 1946, todavia; se seus discípulos decidiram continuar a aplicar seus métodos, isso não é culpa de Keynes.
Podemos, então, isentar Keynes de qualquer culpa?
A teoria de Keynes está sujeita a três tipos de crítica. Uma é moral: uma grande conquista do mundo moderno foi a expansão da liberdade humana — ao separar o governo da religião, ao eliminar a censura, ao por fim à escravidão, ao expandir a extensão das liberdades das mulheres e ao liberar os mercados. A economia deveria ser uma rede de trocas voluntárias. Mas o governo é uma agência de coerção, como tudo o que faz é respaldado pela polícia, exército e sistema prisional. Mesmo assim, Keynes é a favor da reintrodução da coerção governamental na economia. Essa crítica é feita de forma direta por Ayn Rand, por exemplo.
Outra é cognitiva: a teoria de Keynes demanda que os políticos e outros planejadores centrais tenham uma visão praticamente divina da economia. Mas isso é impossível. Outra conquista do mundo moderno tem sido a compreensão social e cientifica de como os preços trabalham para coordenar o conhecimento e as ações de milhões de indivíduos, cada um dos quais conhece seus valores ou circunstâncias. Planejadores econômicos em suas torres de marfim, por mais inteligentes que sejam, podem somente fazer estimativas econômicas grosseiras. Essa crítica é feita de forma direta por Friedrich Hayek, por exemplo.
A crítica da Escolha Pública de Buchanan, por outro lado, foca nos incentivos: o grande erro de Keynes foi ignorar ou subestimar o papel dos incentivos no contexto político. O conselho de Keynes era, em parte, para as nações como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, e cada um deles, Keynes sabia, tinha elementos democráticos significativos que ele deveria ter levado em conta.
(Interessante notar que as primeiras duas traduções da Teoria Geral foram publicadas na Alemanha e no Japão, e nos prefácios àquelas edições de 1936, Keynes notou que suas ideias provavelmente teriam maior receptividade naquelas nações que nos Estados Unidos).
Por exemplo, Franklin D. Roosevelt pode ter sido o tipo de “estatista econômico” semiaristocrático que Keynes tinha em mente. E, em 1932, o candidato Roosevelt defendeu uma postura moralmente superior: “Tenhamos a coragem de não tomar mais dinheiro emprestado, evitando, assim, afundar a nação em déficits contínuos […] eu sei que se continuarmos assim, o fundo do poço chegará”. Mas uma vez eleito, o presidente Roosevelt percebeu mais claramente que os programas de gastos eram enormemente populares do ponto de vista político e que tributos e cortes de gastos eram assustadoramente impopulares.
Então, Keynes foi, pelo menos, ingênuo. Ele deveria ter sido capaz de prever o que os políticos fariam. A frase “nós podemos pagar por isso depois, de alguma forma” é atraente para muitas pessoas, mesmo quando se trata de seu próprio dinheiro. Todavia, é irresistível para os políticos, especialmente quando eles estão gastando o dinheiro de outras pessoas.
Além disso, existe sempre alguma “emergência” que pode ser vista como merecedora de fundos — e sempre existirão economistas que gostam de estar perto do poder e que dirão aos políticos o que eles querem ouvir. Sempre existe uma justificativa para os gastos.
Essas críticas a Keynes são fortes.
Contudo, a questão mais importante é que Keynes não estava meramente recomendando algumas poucas intervenções cirúrgicas para mitigar o impacto dos ciclos ou reanimar economias moribundas. A teoria econômica keynesiana é parte de uma filosofia intervencionista moral e política abrangente.
Muitos antes da Depressão — e muito antes dos novos elementos teóricos da Teoria Geral — Keynes já era um forte oponente do capitalismo de livre mercado.
Em 1926, por exemplo, ele publicou The End of Laissez-Faire (O Fim do Laissez-Faire), no qual criticava o capitalismo de livre mercado e apoiava uma substancial socialização da economia. O socialismo, argumentou, tinha mérito moral porque “se afastava do laissez-faire”: o socialismo “retira a liberdade natural de o ser humano ganhar milhões” e se opõe “ao lucro privado ilimitado”. Como disse Keynes sem rodeios: “Eu aplaudo todas estas coisas”.
Ele também concordava com socialistas que o governo deveria ter “o controle deliberado da moeda e do crédito através de uma instituição central”.
Mas Keynes não era um socialista e ele critica o autoritarismo intrínseco ao socialismo. Seu objetivo era tornar atraente um meio-termo entre os extremos da liberdade capitalista e do controle socialista.
Keynes concordava com o fato dos indivíduos poderem ter suas poupanças privadas. O governo deveria somente controlar e administrar a poupança em nível macro: “uma ato coordenado de julgamento inteligente é necessário caso a escala desejável de poupança atinja o nível geral de comunidade”. Além, deveria ser uma decisão do governo a quantia de “poupança que deveria ser expatriada na forma de investimentos externos”.
Keynes também concede que muitos negócios possam e devam permanecer privados. Mas “muitos projetos de grande porte, particularmente relacionados a serviços de utilidade pública e outros negócios que requerem grande volume de capital fixo, ainda necessitam ser semi-socializados” (enfase adiciona).
No que tange à questão da vida familiar e sexual, o governo não deveria se intrometer. Contudo, Keynes incita, “cada país necessita uma política nacional bem pensada com respeito ao tamanho da população, independente do seu tamanho, para servir de padrão para o futuro”. Não somente isso — aquiescendo com a teoria eugênica — Keynes argumentou que “a comunidade como um todo deve prestar atenção às qualidades inatas, assim como aos meros números dos seus futuros membros”.
Tudo isso e muito mais reflete o Keynes da década de 1920. Uma década depois, quando a Teoria Geral foi publicada, Keynes não tinha mudado sua filosofia política fundamental, mas sim trabalhado no aperfeiçoamento das ferramentas econômicas que colocava ao dispor dos políticos para implementá-las.
Keynes pode ter defendido usos muito escusos dessa ou daquela política. Ele provavelmente teria debatido com os seus seguidores quanto ao momento e forma pela qual tais políticas deveriam ser implementadas. E ele pode ter subestimado a dificuldade existente na tradução da teoria econômica (padronizada) em prática política (confusa).
Todavia, o fato é que ele efetivamente defendeu um sistema econômico fortemente intervencionista. Ele efetivamente ofereceu um kit de ferramentas sofisticadas para o uso dos políticos em suas aventuras intervencionistas. E ele efetivamente deu o OK para os políticos aplicarem suas teorias a seres humanos reais, em uma economia real.
A grande influência que Keynes desfruta devido a tais questões é a maior que qualquer teórico poderia desejar, portanto, Keynes é culpado pelos resultados.
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“Podemos culpar Keynes pelo keynesianismo?” Por Stephen Hicks. Tradução de Matheus Pacini. Revisão de Russ Silva. Artigo Original no “The Good Life”. Visite Publicações em Português para ler os últimos artigos de Stephen Hicks.
Stephen Hicks é o autor do livro Explicando o Pós Modernismo e Nietzsche and the Nazis.