A proposição-padrão é que a filosofia começa com Tales.
Quando ensino isso aos meus alunos, é uma venda difícil, já que entre os textos fundadores da filosofia — atribuídos a Tales por Aristóteles — está a seguinte afirmação:
“O primeiro princípio e a natureza básica de todas as coisas é a água.”
e
“Todas as coisas estão cheias de deuses.”
Vocês podem imaginar quão impressionados ficam os alunos.
Claramente, alguma interpretação mais profunda é necessária. Por que os historiadores da filosofia ficam perturbados com tais afirmações?
Para entender o seu significado, vamos estabelecer um contexto ao regressar à visão de mundo do magnífico e épico poeta Homero. Então, debrucemo-nos sobre a obra Ilíada, a visão pré-filosófica de mundo a qual desejo utilizar como nosso objeto de comparação.
O mundo de Homero: a morte de Heitor
Acredita-se que Homero viveu dos anos 800-700 a.C, um ou dois séculos antes de Tales (nascido por volta de 624 a.C). Os poemas Ilíada e Odisséia de Homero são expressões magníficas da cultura arcaica grega e da importância incalculável do modo grego de pensar sobre a vida humana e seu lugar no universo.
Eu quero focar um grande evento na Ilíada para ilustrar uma pré-filosófica, porém sofisticada, visão da realidade.
Por que Heitor morreu?
Nós podemos imaginar seu pai, Príamo, angustiado, fazendo esta pergunta. E sua mulher, Hécuba, fazendo o mesmo. E seu filho, Astíanax, posteriormente, quando adulto.
Heitor morreu porque Aquiles o matou.
Por que Aquiles o matou? O contexto amplo é que os gregos estavam lutando com os troianos. O contexto específico é que Aquiles queria vingança pela morte de Pátroclo. Em cada caso, podemos traçar uma cadeia causal.
No contexto amplo: por que gregos e troianos estavam lutando? Porque Páris apaixonou-se por Helena, Menelau tornou-se um vingativo marido traído, Agamémnon tinha grandes ambições de poder, Aquiles queria glória, e assim por diante. No mundo de Homero, temos elementos-chave que guiam a ação humana — amor, vingança, poder, glória — representados por estes indivíduos-chave.
No contexto específico: por que Pátroclo foi morto? Porque ele era um jovem que queria provar seu valor, Aquiles estava amuado em sua tenda, Agamémnon tinha raptado a escrava Briseida, e assim por diante.
Até então, tudo isto que foi dito é uma explicação naturalista em termos de ação humana. Em uma interação complexa, o desejo, a motivação, a ação e reação humanas causaram grandes eventos como a Guerra de Tróia e eventos específicos como a morte de Heitor.
Mas a história presente na Ilíada de Homero é mais complexa, já que os deuses também são parte importante da matriz causal.
Com a iminência da grande batalha entre Aquiles e Heitor, Homero volta nossas atenções aos deuses e deusas, os quais estão acompanhando os eventos com grande interesse. Zeus vê Aquiles perseguindo Heitor, e ele está dividido entre o amor por Heitor e a admiração por Aquiles. Quem ele deveria favorecer? Zeus sucumbe à pressão e pede a opinião dos outros deuses:
“Ah, estou vendo com os meus olhos um homem que amo sendo perseguido em volta da muralha.
“Meu coração chora por Heitor, que para mim queimou muitas coxas de bois, tanto nos píncaros do Ida de muitas escarpas, como na cidadela de Troia. Mas agora o divino Aquiles persegue-o com pés velozes em torno da cidade de Príamo. Refleti então vós, ó deuses, e aconselhadamente deliberai se o salvaremos da morte, ou se agora será pelo Pelida Aquiles subjugado, valoroso embora seja.”
(Ilíada, XXII: 168-180)
Atena protesta, e Zeus concorda com ela de que Heitor deveria morrer:
“Anima-te, ó Tritogênia, querida filha.
Não é com séria intenção que falo; pelo contrário, quero ser-te favorável. Faz como te indicar teu ânimo; já não precisas de te refreares.”
Assim dizendo, incitou Atena, já desejosa de partir. E ela lançou-se veloz dos píncaros do Olimpo. (Ilíada, XXII: 182-187)
Atena então engana Heitor ao personificar seu irmão Deífobo, fazendo que Heitor pare de correr e seja alcançado e morto por Aquiles.
A metafísica de Homero
Então, quais são as lições metafísicas do mundo de Homero?
A primeira: a ação humana naturalista por si só não causa eventos na Terra. Os deuses e deusas são participantes ativos, e seus desejos, decisões e ações são importantes: Zeus poderia ter decidido diferentemente, Atenas poderia ter mudado seus sentimentos e, consequentemente, o destino de Heitor e o resultado da Guerra de Troia poderiam ter sido diferentes.
A segunda e diretamente relacionada: no mundo de Homero, o sobrenatural é a força causal mais poderosa e importante. Se os deuses decidem contra algo, tal coisa não acontecerá. E se os deuses decidem que algo acontecerá, tal coisa acontecerá. A ação humana é um poder inferior.
A terceira lição em Homero é que os deuses e deusas são frequentemente impulsivos e divididos entre si. Zeus é frequentemente movido por suas instáveis paixões. Ele entra em conflito com Atena e os outros. Não existe, consequentemente, uma ordem causal estável e previsível no mundo natural. (Existe uma noção de destino em Homero, mas não é consistente e seu papel não é claro – pelo menos, não para mim).
Uma quarta lição que merece menção trata da ética no mundo de Homero: os humanos adoram os deuses não porque eles são morais, mas sim porque são poderosos. Os deuses estão predispostos a um grande número de vícios e defeitos e estão longe de ser moralmente admiráveis. Então, quais são a fonte e o propósito da justiça e outras realidades moralmente importantes? Conceitos de certo e errado não são estranhos aos deuses, mas os deuses não são eticamente claros ou consistentes, tanto em suas palavras quanto em suas ações. E como os humanos tampouco são eticamente claros ou consistentes, o lugar da moralidade no universo é, na melhor das hipóteses, frágil. O poder amoral parece governar tanto o domínio natural quanto o sobrenatural.
De forma abstrata, temos cinco teses metafísicas e éticas na visão de mundo de Homero:
- Causalidade sobrenatural é parte da explicação dos eventos naturais.
A causalidade sobrenatural é mais poderosa que a causalidade natural. - O sobrenatural é pessoal.
- Consequentemente, a causalidade sobrenatural é às vezes impulsiva e tão inconsistente ao ponto de tornar incertas as previsões de longo prazo.
- Consequentemente, a ética é uma questão, principalmente, de poder — venere deuses e reis não porque são justos, mas sim porque são poderosos.
Agora estamos prontos para a revolução iniciada por Tales (por volta de 624-546 a.C.).
E se negássemos algumas ou todas aquelas cinco teses? Com o que se pareceria nossa visão de mundo?
A filosofia começa: a revolução de Tales
Vamos rotular os cinco abstratos temas homéricos como segue:
H1. A causalidade sobrenatural é parte da explicação dos eventos naturais.
H2. A causalidade sobrenatural é mais poderosa que a causalidade natural.
H3. O sobrenatural é pessoal.
H4. Consequentemente, a causalidade sobrenatural é às vezes impulsiva e tão inconsistente ao ponto de tornar incertas as previsões de longo prazo.
H5. Consequentemente, a ética é uma questão, em grande parte, de poder — venere deuses e reis não porque são justos, mas porque são poderosos.
Agora, vamos retornar a Tales e ao nascimento de uma nova visão de mundo:
“O primeiro princípio e a natureza básica de todas as coisas é a água.”
O primeiro princípio de Tales é a água. Se for a água, então não são os deuses. Os deuses tornaram-se, na melhor das hipóteses, secundários. Então, temos pelo menos um desafio implícito à.
Além disso, a natureza básica de todas as coisas é a água. A água é um fenômeno natural, não sobrenatural, portanto, temos pelo menos uma negação implícita de H1.
Por que a água? Sem dúvida, Tales observou o ciclo da água, o fluxo da chuva aos rios e eventualmente ao mar, a importância fundamental da água para todos os seres vivos, que a água pode ser transformada de líquida em sólida e de volta à líquida, depois, de líquida a gasosa e depois a líquida novamente — e que assim o faz com regularidade. A questão não é que ninguém tenha percebido regularidades na natureza antes de Tales. Mas se a água é o primeiro princípio de todas as coisas, então toda a realidade é regular. Então, temos pelo menos um desafio implícito à.
Estamos bem no caminho de pensar sobre a natureza como um sistema físico autossuficiente, autodeterminado e de causa e efeito definido.
Está claro, também, que a afirmação de Tales é baseada em observações das transformações de líquido para gasoso ou sólido, e assim por diante. Portanto, ele não está baseando suas visões em histórias tradicionais transmitidas por milhares de anos. E ele está oferecendo uma hipótese explanatória para aquelas observações. Observação integrada com explicações é uma marca da abordagem filosófica naturalista.
Posteriormente, pré-socráticos debateram com Tales. (Por outro lado, quem nunca debateria com Homero?) Anaxímenes defendeu que o fogo era um candidato melhor a primeiro princípio que a água, como o fez Heráclito. Anaximandro (meu pré-socrático favorito) defendeu que ter somente um estado básico do ser, seja água ou fogo, era muito reducionista, e então propôs que água, ar, terra e fogo participavam de uma transformação cíclica fora de um estado ilimitado. E outros entraram na disputa.
Os pré-socráticos estão agora usando a razão de forma diferente. Não está claro que eles estão autoconscientes desse novo método de pensamento. Mas eles não estão mais pensando em termos de princípios homéricos — e os novos pensadores rapidamente se tornaram incrédulos e desdenhosos quando histórias homéricas são tomadas como algo mais que literatura fantástica (fantasiosa). Hecateu de Mileto (550-489), que morreu 19 anos antes do nascimento de Sócrates, é um exemplo.
“O que escrevo aqui é o que considero verdade. Pois as histórias dos gregos são numerosas e, em minha opinião, ridículas”.
Um novo modo de pensar havia começado. A filosofia e as ciências foram lançadas e floresceram rapidamente.
No que tange à H5 e o desenvolvimento de uma abordagem filosófica à ética, essa é uma questão que merece outro artigo, e envolve as inovações de Hesíodo e outros gigantes.
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Publicado pela primeira vez em Inglês: “Why Philosophy Begins with Thales”. Tradução de Matheus Pacini e revisão de Mateus Bernardino.