Quando o altruísmo torna-se patológico [Portuguese translation]

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[This is a Portuguese translation of “When Altruism Becomes Pathological”, originally published in English at EveryJoe.]

Quem é mais propenso a trapacear — praticantes de esportes individuais ou de esportes coletivos?

Um experimento fascinante realizado pelo professor Sharon K. Stoll, publicado no Chronicle of Higher Education, compara atletas de esportes individuais como golfe ou tênis simples com atletas de esportes coletivos tais como basquete ou tênis de duplas. Atletas de esportes individuais exibiram níveis mais elevados de moralidade, enquanto os de esportes coletivos eram muito mais propensos a trapacear e racionalizar.

No tênis, por exemplo, se a rebatida de meu adversário tocar a linha, supõe-se que eu deva aceitar tal fato, perdendo o ponto. Em uma partida de simples, eu, sozinho, perco o ponto; contudo, em uma partida de duplas, tanto eu como o meu companheiro de equipe sofrem a derrota. Assim, meus incentivos são diferentes, e o meu compromisso de fazer o que é melhor para a minha equipe me dá uma razão adicional para trapacear.

Da mesma forma, em esportes coletivos tais como o futebol americano ou o basquete, a estratégia e muitas das jogadas são determinadas pelos técnicos que estão do lado de fora. Em contraste, nos esportes individuais cada atleta (por si só) tem a responsabilidade da decisão. Assim, os atletas de esportes individuais são muito mais propensos a aprender a assumir responsabilidade por suas ações, enquanto os atletas de esportes coletivos são mais propensos a aprender a seguir ordens e a transferir a responsabilidade para os outros.
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Outro aspecto é a forma como um indivíduo vê seus oponentes e a si próprio. Na luta livre normal, um lutador está bem ciente de si e do seu oponente como indivíduos únicos, mas em esportes coletivos — com muitas pessoas usando o mesmo uniforme — é bem mais provável que você veja seus oponentes como seres indiferenciados e despersonalizados.

Tudo isso nos leva a um território moral mais obscuro e os debates sobre o altruísmo — e, para esse propósito, tomei emprestado para o título de meu artigo o título da obra pioneira da professora Barbara Oakley, Pathological Altruism (Oxford University Press, 2012).

O altruísmo, como tantos outros conceitos filosóficos complexos e polêmicos, é usado de diversas formas. Em sua forma mais forte, ele mantem o significado dado por Auguste Comte, proponente do termo (em 1830): que os interesses dos outros são eticamente superiores, e que o desejo de um indivíduo sacrificar seus próprios interesses pelo bem dos outros é o critério da moralidade. “O principal problema da vida humana”, Comte argumentou, é “a subordinação do altruísmo ao egoísmo”.

Em sua forma religiosa, o altruísmo forte foi exortado pelo professor do famoso escultor Auguste Rodin, Padre Eymard, que foi canonizado em 1962. Ele propunha como principio orientador que “para salvar a sociedade, nós temos que reviver o espírito do sacrifício” por meio do “sofrimento e da auto-abnegação” e “nós estamos aqui unicamente para a autoimolação do corpo e da alma”.

Em sua forma secular, Jane Addams, progressista estadunidense ganhadora do prêmio Nobel da Paz, argumentou que “neste esforço em prol de mais moralidade em nossas relações sociais, nós devemos exigir que o indivíduo esteja disposto a renegar o seu sentimento de realização pessoal, devendo contentar-se ao perceber o valor de suas ações somente em conexão com a atividade alheia”.

Em usos mais comuns, todavia, o altruísmo às vezes significa meramente o comportamento intencional que respeita ou beneficia os interesses dos outros. Tal uso não implica necessariamente uma oposição ao egoísmo, na medida em que negociadores, conhecidos e amigos, e namorados podem formar relações sociais que são calcadas no respeito mútuo aos interesses das partes.
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A melhor forma de evitar confusão terminológica é usar o termo pró-social para intenções e ações que fomentam resultados sociais positivos, e usar altruísmo e egoísmo para as posições concorrentes sobre qual a melhor forma de alcançar o pró-social.

Se a promoção do comportamento pró-social (comércio, amizade, etc.) é parte da ética, então, qual é a melhor forma de fomentá-lo: respeitando os interesses individuais ou obrigando-os a sacrificar seus interesses em prol dos outros? Isto é, pensamos que o pró-social requer um compromisso com relações ganha-ganha (egoísmo), ou perde-ganha (altruísmo)?

A preocupação com respeito às possíveis implicações patológicas do altruísmo tem ligação direta com a mentalidade de um tipo de trapaceador, exemplificada acima no contraste entre esportes individuais e coletivos:

  • Pelo bem da equipe, sacrificarei minha integridade e mentirei.
  • Para ser parte da equipe, sacrificarei minha independência de julgamento e seguirei ordens.
  • “Não existe um ‘Eu’ na equipe”, e nossos oponentes têm um caráter impessoal.

Em poucas palavras, o que se comporta mal parece estar agindo como exigido por um altruísmo forte — ele está colocando os outros antes dele próprio, valorizando as necessidades da equipe acima das suas, e sacrificando a sua individualidade em prol do social.

O professor Dan Ariely da Carnegie-Mellon University estuda o fenômeno da trapaça em grupos e conduziu uma série de experimentos com estudantes da instituição. Os estudantes de um grupo teriam que resolver uma série de problemas matemáticos, sendo remunerados de acordo após sua conclusão. Um membro do grupo que era, na verdade, um aliado trabalhando junto com os pesquisadores, levantou após um curto período de tempo e afirmou que tinha resolvido todos os problemas. Claramente, isso era improvável dado o número e a dificuldade dos problemas; contudo, o supervisor do experimento pagou o prêmio sem verificar se ele tinha, de fato, resolvido todos os problemas. Não causa surpresa que os outros estudantes logo tenham feito o mesmo, afirmando terem resolvido muito mais problemas matemáticos do que, de fato, tinham.
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O experimento foi feito novamente com outro grupo de estudantes, mas com uma diferença — o estudante infiltrado usou uma camiseta da University of Pittsburgh, o que o identificava como um membro de um grupo social diferentes, os rivais do outro lado da cidade. Quando este estudante da UP disse que tinha terminado, a quantidade subsequente de trapaça (afirmações falsas) entre os outros estudantes foi muito, muito menor.

A implicação moralmente negativa do experimento de Ariely é que, quando os indivíduos se consideram primariamente como membros de um grupo, sua responsabilidade individual diminui. Eu trapacearei se outros membros do meu grupo trapacearem, mas não trapacearei se membros de outros grupos trapacearem. Em resumo: o compasso moral que é seguido é determinado pelos outros componentes de meu grupo, e não por mim mesmo.

Pior: a identidade interna de um grupo X pode e, muitas vezes, leva à disposição de sacrificar indivíduos que são membros de outros grupos (Y,Z). O professor Joachim Krueger, que colaborou para a obra de Oakley, nota que “o altruísmo tende a ser paroquial”, isto é, quando os interesses dos membros de outros grupos (Y,Z) estão em conflito com o do grupo (X), o sacrifício de indivíduos naqueles outros grupos (Y,Z) parece moralmente desejável e, até mesmo, imperativo. Em sua forma extrema, essa disposição a sacrificar os membros de outros grupos é um componente da psicologia genocida. Se for para o bem de meu grupo — e as necessidades de meu grupo são de suma importância — então, vale tudo.

Mesmo membros do grupo X que parecem ser ameaças ao grupo como um todo — dissidentes, hereges, pessoas com deformações físicas ou enfermidades mentais — podem ser sacrificados moralmente, de acordo com o altruísmo patológico. Muitos comentaristas perceberem que o coletivismo altruísta imbuído no pedido do juiz da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes por esterilização forçada para evitar que os “manifestadamente incapazes procriem”. Como ele escreveu em Buck v. Bell (1926): “é melhor para todo mundo” que tais indivíduos sejam sacrificados.

E, é claro, a disposição a se autosacrificar pelo grupo é o componente-chave do altruísmo. Em sua forma patológica, aqueles que buscam o martírio pela causa, kamikazes, e homens-bomba são exemplos de pessoas com disposição extrema ao autosacrifício — de forma a mostrar seu altruísmo em benefício da causa do grupo.

O ponto é que, apesar do argumento frequentemente repetido de que o altruísmo é positivo, existe um conjunto altamente complexo de questões fascinantes — e perturbadoras — que merecem ser mais bem exploradas do ponto de vista terminológico, psicológico e moral.


hicks-stephen-2013“Quando o altruísmo torna-se patológico”, por Stephen Hicks. Tradução de Matheus Pacini. Revisão de Ivanildo Santos III. Artigo Original no “The Good Life”. Visite Publicações em Português para ler os últimos artigos de Stephen Hicks.

Stephen Hicks é o autor do livro Explicando o Pós Modernismo e Nietzsche and the Nazis.

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