Católico vs. Ateu, Parte 2: Razão e fé são incompatíveis? [Portuguese translation]

[This is a Portuguese translation of Part 2 of the Theist vs. Atheist series between John C. Wright and Stephen R. C. Hicks, originally published in English at EveryJoe.]

Razão e fé são incompatíveis?

Por Stephen Hicks
Tradução e Revisão de Matheus Pacini

Eu aprecio o ensaio inicial do Sr. Wright e estou de acordo com porções substanciais dele.

Se nós arranjarmos as religiões ao longo de um espectro de mais para menos racional, a versão de catolicismo por ele apresentada está theist-vs-atheistentre as mais racionais. Muitos defensores e oponentes da religião são animados mais pela raiva, êxtase e outras forças psicológicas, as quais os tornam indispostos a raciocinar — seja para apresentar suas próprias visões de forma clara, ou para ouvir as visões do outro lado. O raciocínio pode ser uma atividade apaixonada ou desapaixonada, mas nenhum progresso individual ou social pode ser alcançado sem ele.

A meu ver, Mr. Wright e eu concordamos em colocar de lado diversas versões de Cristianismo — a de Tertuliano, “creio porque é absurdo”, a de Lutero, “a razão é a prostituta do diabo”, e a de Kierkegaard, “a fé requer a crucificação da razão”. E concordamos em focar na visão, bem expressada por Tomás de Aquino e outros, que a razão e a fé são duas formas legítimas e complementares de se alcançar um tipo de crença.

Não obstante, permitam-me focar nas minhas divergências substancias para com a posição do Sr. Wright, as quais são (1) que, em grande medida, pode ser demonstrado que a crença religiosa é racional, (2) que os argumentos demonstram um Deus monoteísta, e (3) que a fé é uma forma legítima de preencher a lacuna entre o que pode ser provado e um comprometimento total à crença religiosa.

Eu não acho que nenhuma das três partes supracitadas sejam verdadeiras. Parte 1 e 2 serão tratadas nos próximos artigos, quando debateremos os méritos dos argumentos em prol e contra a existência de Deus, portanto, permitam-me focar na parte 3.

Suponha que concedamos, pelo bem do argumento, que a evidência e a lógica tornam 80% provável que um Deus monoteísta existe. Um indivíduo pode discordar é claro e considerar os argumentos totalmente não convincentes — isto é, um indivíduo pode julgar que torna 0% provável. Ou um indivíduo pode discordar e considerar os argumentos totalmente convincentes — qual seja, pode julgar que tornam 100% provável.

Mas vamos concordar por agora com a alegação do Sr. Wright de que os argumentos tornam muito provável a existência de Deus, mas que existe, todavia, uma lacuna entre o que os argumentos mostram e o comprometimento total que a maioria das religiões requer. O que devemos fazer com essa lacuna?

Algumas analogias com outras áreas importantes de julgamento podem clarificar os princípios cognitivos envolvidos.

Medicina: suponha que você consulte um médico, quem depois de analisar cuidadosamente, diz que a evidência mostra que você têm 80% de chances de ter um diagnóstico X. Um cirurgião consultado adiciona que se ele fosse operar, você teria 80% de chance de sobrevivência. Em que você deveria acreditar para aceitar a operação nessas circunstâncias?

Direito: você é um juiz em um julgamento criminal e sua análise das evidências aponta que é 80% provável que o réu seja culpado. A qual sentença você deveria chegar?

O princípio é que o grau de crença de um indivíduo deveria ser ligado ao grau de evidência. Se existe pouca evidência, então você deveria julgar que é possível. Se existe uma preponderância de evidência, então você deveria dizer que é provável. E se a evidência for conclusiva, então e somente então, você deveria considerar que é uma certeza.

Nós pedimos e esperamos que o júri, por exemplo, seja capaz de entender os diferentes padrões de evidência necessários para a condenação em casos civis e criminais: preponderância de evidência vs além de qualquer dúvida razoável. E na vida em geral, parte da maturidade cognitiva é ser capaz de avaliar evidências em uma escala móvel, ajustando as suas crenças de acordo.

O mesmo se aplica a todas as outras coisas importantes na vida, incluindo a religião.

Então, se o seu melhor julgamento racional é que a preponderância de evidência e lógica indica que Deus realmente existe, então o seu estado de crença deveria ser que é provável que Deus existe. Contudo, você não deveria eliminar de sua mente os 20% de dúvida restantes. Você deveria permanecer com a mente aberta nesse sentido, ou seja, aberto a novas evidências que aumentarão ou diminuirão os 20% de margem de dúvida.

O Sr. Wright reconhece claramente que existem na verdade duas lacunas a serem preenchidas. Uma é a lacuna entre acreditar em um deus monoteísta genérico e o Deus católico-cristão em particular. É uma coisa acreditar, como o fazem os deístas, que é racional acreditar que existe algum tipo de ser divino lá fora. É algo totalmente diferente acreditar que ele é exatamente o Deus cristão com todas as “coisas surpreendentes e chocantes” que vêm junto com aquela crença.

A outra é a lacuna entre estar convencido de que Deus realmente existe e estar incondicionalmente cheio de convicção.

Aqui o Sr. Wright preenche as lacunas com sentimentalismo. Você deveria estar “loucamente apaixonado por Deus” e o amor é um tipo de “divina loucura”, por exemplo.

Tal linguagem é, em meu julgamento, uma descrição precisa do tipo de estratégia de fé mais comum. A é propriamente utilizada para descrever o comprometimento com uma crença feita além de evidência. Ela supostamente preencheria lacunas. A fé é quase sempre é um processo movido pela emoção no qual um indivíduo se obriga a acreditar naquilo que você deseja ser verdade.

Aqui entramos em um rico e complexo território filosófico e psicológico. Parte dele é que, como humanos, nós ansiamos por paixão em nossas vidas. Parte dele também é nosso conhecimento de que as maiores recompensas da vida quase sempre requerem compromisso permanente. E parte disso é saber que frequentemente necessitamos pesar decisões e compromissos na ausência de informação completa e precisa. Em uma linguagem mais abstrata, a questão é a da relação entre razão e emoção na construção e manutenção de compromissos.Spirit-mind

Algumas analogias podem novamente nos ajudar a esclarecer os princípios envolvidos.

Caça: um caçador faminto que ama um guisado de coelho julga que é muito provável que o farfalhar em um arbusto é o coelho que ele está perseguindo. Deveria o desejo de matá-lo, de forma a saborear esse delicioso coelho, levá-lo a atirar? (O farfalhar poderia ser meramente o vento – ou uma pequena criança brincando na área).

Guerra: um general que busca a glória na batalha e cuja nação está DESESPERADA por vitória pensa que é provável que suas tropas prevaleçam se ele atacar agora. Deveria seu desejo de triunfo levá-lo a enviar suas tropas para a batalha?

Política: paixões agitam as emoções no julgamento de candidatos políticos. Quantas vezes, durante as eleições presidenciais, os eleitores tornam-se cheios de entusiasmo e expressam suas convicções de que o seu candidato salvará a nação se somente o número de pessoas suficiente acreditassem nele? Deveríamos encorajar ou desencorajar esse fenômeno psicológico?

Ou talvez deveríamos considerar somente os casos que envolvem outros tipos de paixões. Procurar bênçãos materiais, triunfo sobre a morte, e o desejo por um líder messiânico podem ser paixões motivadas pela religião.

Mas o amor e a veneração de um deus é outra, e uma da qual o Sr. Wright fala diretamente. Então, o que dizer do amor?

No meu artigo inicial, sugeri o artifício de falar com uma jovem de 15 anos que está sinceramente pedindo conselhos sobre religião. Como a analogia do amor nos ajudaria aqui? Jovens de 15 anos são certamente capazes de formar compromissos intensamente apaixonados com respeito a objetos particulares de amor — por exemplo, com aquele jovem de 15 anos de sua aula de literatura. E é provavelmente verdade que você não poderia dissuadí-la de seu amor. Mas a experiência de amar loucamente dificilmente é a garantia de que o garoto é realmente o amor de sua vida. Talvez ele seja, mas o resto de nós será perdoado por duvidar, aconselhando-a a manter uma mente aberta para não se precipitar.

Então, talvez, um melhor exemplo seja imaginar que a menina se tornou uma mulher madura de 30 anos que teve algumas experiências de amores vividos e perdidos. Ela está agora namorando um homem e está 80% certa de que ele é o grande amor de sua vida. Ela sabe que deseja estar loucamente apaixonada e fazer um compromisso para a vida toda.

Mas ela também sabe que o fenômeno da “cegueira de amor” e como os desejos podem distorcer a percepção e o julgamento. Ela sabe que as pessoas podem projetar qualidades nas outras que elas na verdade não têm. Ela sabe que as pessoas podem fazer escolhas desastrosas que levam ao sofrimento e ao divórcio.

Então, sim, ela poderia estar aberta ao amor e a compromissos, mas como é uma pessoa mais velha e mais sábia, deveria também estar alerta para qualquer contraponto (ou sinais de alerta), disposta a se desapaixonar caso o objeto de seu desejo prove ser — apesar de suas aparências iniciais — um perdedor, um bruto ou alguém com outras qualidades alheias a relacionamentos saudáveis.

O mesmo deveria se aplicar às religiões que estamos considerando.

A analogia do amor romântico com o religioso tem realmente limitações. No caso da paixão romântica, nós já sabemos que a pessoa com quem namoramos de fato existe, e nossa questão trata de quanta confiança podemos ter naquela pessoa ou quão forte compromisso deveríamos ter. No caso da religião, todavia, nós primeiro temos o problema de estabelecer que o Ser atualmente existe.

Nossa próxima questão é a seguinte: as evidências e argumentos mostram que Deus existe?

Um comentário final. Dr. Wright sugere que “para o teísta, a razão é somente um escudo, não uma espada”. Respeitando os limites de tais figuras de linguagem, eu sugiro que as metáforas marciais não capturam o papel básico da razão. Sim, em alguns contextos sociais específicos, a razão pode funcionar como uma forma de ataque ou defesa. Não obstante, em nível mais fundamental, a razão é uma ferramenta de investigação da realidade, não uma arma de conflito social.

Nós deveríamos utilizar a ferramenta e nela confiar ao moldar nossas crenças até onde puderem nos levar. Mas não além disso.

* * *

Stephen Hicks é o autor do livro Explicando o Pós Modernismo e Nietzsche and the Nazis. Ele escreve regularmente no site StephenHicks.org. Sinta-se à vontade para enviar suas questões filosóficas ou dilemas morais para professorhicks@everyjoe.com.

Artigo Original: “Are Reason and Faith Compatible?” Visite Publicações em Português para ler os últimos artigos de Stephen Hicks e de religião em Português. Português Religion Series – Part 2 PDF.


A Existência de Deus pode ser comprovada (ou, pelo menos, ser considerada uma hipótese racional)?

Por John C. Wright
Tradução de Matheus Pacini
Revisão de Mateus Bernardinomind-tricks

Essa coluna deve ser três vezes maior que o normal, já que devo responder duas colunas do Sr. Hicks e abordar o tema da questão desta semana.

Em primeiro lugar:

Não há nada no salvo inicial do Sr. Hicks que necessita ser contestado, pois ele não disse nada controverso.

Ele propôs que não é indelicado ou desgracioso discutir religião; e realmente não o é sempre e quando se mantem um nível de diálogo educado. O Sr. Hicks ofereceu alguns conselhos paternais de que as crianças não deveriam ser doutrinadas. Não estou certo quanto ao que ele entende por esta palavra, mas pelo contexto parece que ele quer dizer “ensinar a repetir ao invés de entender as crenças dos pais”. Se assim for, eu concordo plenamente.

Por essa definição, “doutrinar” crianças significaria que elas não devem ser adequadamente catequizadas, logo, não adequadamente preparadas para encarar perguntas céticas contra suas crenças (sejam elas teístas ou ateístas). Se assim for, então todos nós concordamos que as crianças deveriam ser adequadamente catequizadas em vez de serem doutrinadas.

As crianças devem ser ensinadas a questionar a autoridade já que, se não forem, não saberão a quem recorrer para respostas autoritárias.

Hoje, talvez, esse conselho se aplique mais a teístas que ateístas. A crença cristã é um estudo disciplinado e organizado do pensamento, como a economia, a física, a geometria, o direito, ou o raciocínio moral. É como uma torre construída a partir da base por axiomas e noções comuns, com conclusões apoiando-se sobre conclusões anteriores. Os opositores que meramente bravejam quando o tópico é tratado põem a torre abaixo.

Mas o Sr. Hicks e eu não estamos discutindo sobre meros opositores destrutivos e de má-fé. Quando ele dá seu conselho sobre como educar as crianças, ele está dizendo para não zombar de toda questão que uma criança levante sobre religião. Tanto teístas como ateístas concordam que o melhor para as crianças é despertar o espírito da curiosidade e o amor pela sabedoria.

Pois quando a torre de uma doutrina insensata colapsa, como as torres do orgulho estão por fazer, a destruição e os entulhos são tão pavorosos quanto a própria queda do arranha-céu. Contemple os entulhos deixados quando a fé no Czar abandonou a Rússia, a fé na República de Weimar a Alemanha, e a fé na Monarquia a França.

Toda a criança deve ser educada para ser a engenheira da torre de suas próprias crenças sobre o mundo, e o pai não lhe faz um favor falhando em lhe ensinar onde estão seus pontos fracos.

O Sr. Hicks também não apura a questão central sobre a moralidade envolvida nas discussões deste tópico quando isto não se dá em um nível educado de diálogo, ou seja, essa mesma coisa que torna a discussão da fé cristã diferente que qualquer outro tópico discutido pelos humanos.

De maneira e à medida que o amor a Deus é uma questão de fato, obviamente isto deve ser discutido como qualquer outra questão de fato. Ou isso é verdade ou não é, e nem a risada dos zombadores ou as lágrimas dos crédulos tornará falsa uma verdade ou uma falsidade verdade.

Mas isto é obviamente mais que uma questão de fato. Um diálogo respeitoso sobre, digamos, uma teoria da astronomia não tem nada em jogo além do mero conhecimento intelectual. Não existe nada imoral envolvido no ato de convencer um amigo a abandonar a constante cosmológica de Einstein.

Mas se você estiver tentando convencer um noivo a não se casar com uma noiva que você suspeita que será infiel, ou se você está tentando convencer um pai a desistir de procurar seu filho na selva onde foi visto pela última vez, então, forçar ou largar o tópico torna-se uma questão moral de julgamento delicado. É uma questão moral porque se você estiver errado, e a noiva for fiel ou a criança estiver viva, você terá causado dano irreparável à alma e à vida de sua vítima. A discussão abstrata deixará cicatrizes reais e permanentes.

Infelizmente, parte do desacordo é a questão do que está em jogo. Se Cristo é fiel a sua palavra, convencer um crente desencorajado a abandonar sua fé cristã põe em perigo sua alma imortal. Se não for, a mesma conversa significa iluminar a escuridão da superstição, quebrando os grilhões de um poder sacerdotal enganoso. (É claro, se a visão de mundo de um ateísta é verdadeira, existe talvez desutilidade e desonra envolvidas em acreditar numa falsidade, mas não ofende a nada além da lei moral do homem, pois não existe lei acima daquela).

Logo, para o bem ou para o mal, mesmo a questão de quão sábio ou negligente seja convencer um crente a abandonar sua fé depende da questão de fato de se Deus é verdadeiro ou não. Portanto, como disse antes, não existe um território neutro nesta guerra. A decisão é binária e absoluta.

Então, entre o que o Sr. Hicks disse e o que eu não disse, eu acredito nós concordamos com o ponto básico de que a matéria não somente pode, mas deve, ser discutida.

* * *

No seu segundo salvo, o Sr. Hicks recai no hábito acomodado de citar erroneamente o que eu cuidadosamente disse. Solicita-se que o leitor esteja atento contra tal negligência de pensamento, e note onde meu comentário distingue-se do resumo que o Sr. Hicks fez dele.

Primeiro, eu não disse nada sobre a “minha” versão de Cristianismo. Não nos deixemos levar pelo erro de pensar que estou discutindo ou defendendo uma opinião pessoal. Eu estou discutindo e defendendo o Cristianismo católico como tem sido praticado e ensinado por 2000 anos. Embora eu tenha respeito por protestantes, muçulmanos e outros hereges, seu pensamento é heterodoxo, e eu suspeito que não possa ser defendido racionalmente, devido às contradições lógicas internas inerentes à heterodoxia. Por isso, não estou qualificado a defender suas crenças com exceção de algum ponto no qual, por um feliz acaso, tenha envolvimento com a ortodoxia.

Por este motivo, defenderei o paganismo sempre e quando se sobrepuser à ortodoxia, pois os pagãos são sábios o bastante para saber que o mundo material não pode explicar o mundo material, e não pode prestar esclarecimento sobre a vida como ela é. Eles sabem que deve existir algo mais sobre a vida além desta vida.

Em segundo lugar, o Sr. Hicks afirma que eu disse: 

 “(1) que, em grande medida, pode ser demonstrado que a crença religiosa é racional”. 

Eu não disse nada sobre qualquer medida, grande ou pequena. O monoteísmo é racional e pode ser provado pela razão; o Cristianismo é racional e pode ser defendido pela razão, no entanto, seus mistérios centrais — Encarnação, Trindade e Soteriologia — não podem.

Por um lado, o amor é completamente racional, e por outro, está além da razão e é a única coisa que a torna possível — no sentido que a filosofia é o amor pela verdade. Se alguém fosse resumir minha frase aqui, dizendo “O Sr. Wright diz que, em grande medida, a crença (fé) no amor pode ser demonstrada racionalmente”, tal resumo estaria totalmente errado. Da mesma forma aqui.

“(2) que os argumentos demonstram um Deus monoteísta”

Não necessariamente. O que eu disse foi “a razão pode levar um indivíduo paulatinamente ao monoteísmo, mas não pode levá-lo até Deus”. Eu não utilizei a palavra demonstrar por uma razão: eu estava falando de argumentos probatórios, isto é, argumentos que concedem certo peso à proposição, e não argumentos demonstrativos.

O argumento dado por Euclides para provar o teorema pitagórico é dedutivo e hermético: ele pode somente ser negado por alguém, vamos chamá-lo de “Jogo Limpo”, que negue um dos axiomas de Euclides. Os argumentos existentes nos Documentos Federalistas, por outro lado, que mostram a sabedoria da forma constitucional de governo, são probatórios, e sua força de persuasão depende da experiência, do bom senso, e do conhecimento da lei, da natureza humana, e da história encontrada nos homens educados dos dias de hoje.

 “(3) que a fé é uma forma legítima de preencher a lacuna entre o que pode ser provado e um comprometimento total à crença religiosa”.

Eu sequer estou certo do que essa sentença significa, e eu não a reconheço como algo que tenha dito. Eu não penso que a fé e a razão sejam opostos (de fato, eu as considero como mutuamente interdependentes), e muito menos proponho que uma seja um substituto quando falta a outra.

Pensei ter sido claro. O Amor de Deus, como todas as formas de amor, tem alguns aspectos que podem ser discutidos como uma questão de fato e razão, tal como se a garota que você ama é legalmente casada ou não. Outros aspectos não podem ser discutidos como questões de fato, por exemplo, o porquê de você amá-la.

Se sua irmã disser que está apaixonada por Oberon, o Rei-Fada, uma coisa é convencê-la de que fadas não existem, e outra convencê-la a ser sincera com Tom, o filho do padeiro, e ignorar as trombetas da terra das fadas soprando debilmente no ocidente. A primeira é uma questão de fato; a segunda, de sinceridade.

O papel da razão não é atacar as objeções que um tímido corajoso ou um coração arrogante ou uma mente leviana inventam, as quais podem desconcertar ou fascinar os incautos, seduzindo-os a duvidar da verdade que encontrou em certo momento, quando sua mente estava clara. A fé não é uma substituta da razão, mas uma defesa da razão contra os poderes da irracionalidade.

O mesmo se aplica a ateístas e teístas. Quando o ateísta caminha sozinho no cemitério à noite, ele deve invocar sua fé para lembrá-lo do argumento contra a existência de fantasmas, a qual conheceu sem dúvida numa tarde na sala de convivência da escola, rodeado por amigos zombadores. Da mesma forma, o cristão quando vê seu filho na sepultura deve ser fiel ao que era mais fácil crer quando estava ajoelhado na missa, sendo tocado pelo Espírito Santo. Fé é simplesmente uma palavra que significa fidelidade.

De fato, a fidelidade não tem nenhum significado técnico adicional na teologia cristã, dado que consideramos aquela firmeza da fidelidade como uma dádiva divina a sustentar, mas o Sr. Hicks não levantou tal questão, e é irrelevante aqui.cross-light

Em uma coluna tão pequena, realmente me incomoda ter de me repetir. A proposição que aqui defendo é a seguinte:

As faculdades do homem o tornam capaz de alcançar o conhecimento da existência de um Deus pessoal. Mas para um homem ter real intimidade com Ele, Deus convidou ambos a relevarem-se ao homem, dando-lhe a graça de ser capaz de acolher essa revelação na fé.

Logo, as provas da existência de Deus, todavia, podem predispô-lo à fé, ajudando-o a ver que a fé não se opõe à razão.

As faculdades do homem incluem sua razão, sua sabedoria e suas habilidades. A intimidade está além das faculdades desamparadas pela razão. A intimidade não é simplesmente conhecimento. O demônio tem conhecimento da existência de Deus, mas não tem intimidade e, muito menos, amizade com Ele.

O argumento filosófico para provar que Deus existe não pode conceder fé, que é esta intimidade, mais que um raciocínio pode fazê-lo apaixonar-se.

Mas tais provas são valiosas, já que podem predispor um indivíduo a aceitar a fé, tão logo razões falsas e falaciosas para a descrença são esclarecidas; e segundo, podem mostrar que a fé não se opõe a razão.

O Sr. Hicks então cita alguns hereges que discordam dos ensinamentos católicos nesta questão. Eu não estou certo de que lhe vale gastar seu tempo: eu não nego que outras pessoas consideram a fé e razão antitéticas. Obviamente o fazem. Eu nego que a ortodoxia pense assim.

A citação de Tertuliano está errada. A citação “Credo quia absurdum” (tradução livre, creio porque é absurdo) é atribuída a Tertuliano. Mas Tertúlio nunca escreveu isso: o que ele escreveu (A Carne de Cristo, v. 4) foi “Prorsus credibile est, quia ineptum est” (é absolutamente crível, porque é insensato).

Esta é a citação exata: O Filho de Deus foi crucificado: não me envergonho, porque vergonhoso é. O Filho de Deus morreu; é absolutamente crível, porque é insensato. Ele foi sepultado, e se levantou novamente; é certo, porque impossível.

Ressalta-se que ele está argumentando contra o Docetismo de Marcião, uma forma de heresia que pregava que Cristo não poderia ter sofrido porque é impossível o sofrimento para seres divinos (uma ideia grega também encontrada na obra Sobre a Natureza das Coisas de Lucrécio).

Tertuliano está falando do fato de que se os evangelistas estivessem mentindo ou contando fábulas quando retrataram o Cristo como capaz de sofrer, eles teriam que tornar a mentira crível, dizendo que Cristo não sofreu dor. Isto é, eles teriam que fazer com que a mentira parecesse com a vida, de acordo com as expectativas da audiência da época. Tertuliano acredita que, pelo relato da Paixão de Cristo ser incongruente, portanto, pouco provável de ser uma mentira, seria verdade. Tertuliano está utilizando a palavra insensato de forma irônica, para significar aquelas coisas que um mentiroso nunca diria por medo de ninguém acreditar nele.

É por isso que ninguém deveria citar coisas fora de contexto.

Posto que eu nada disse sobre a fé oferecer uma prova ou a fé preencher uma lacuna entre a razão e a realidade, o cerne do argumento do Sr. Hicks é irrelevante, e não necessita ser abordado.

Sr. Hicks então faz a alegação falsa de que estou preenchendo essas lacunas com emotividade. Infelizmente para essa alegação, eu não me utilizei deste recurso, e tampouco sinto a necessidade de responder a tal espantalho e argumento barato.

Depois ele define “fé” como “um compromisso de crença feito além da evidência”.

Essa é uma definição falsa, infantilmente até. Seria tão absurdo quanto se eu fosse definir “ceticismo” como uma “covarde incapacidade de ver Deus”. Se o Sr. Hicks foi tolo o bastante para aceitar a definição de ceticismo como covardia, a discussão estaria terminada em um instante. Da mesma forma, se eu fosse tolo o bastante para aceitar sua definição de fé como emotividade ou como falta de evidência, a discussão estaria terminada.

A palavra fé, fidelidade, significa verdade. Ela significa lealdade, significa manter suas emoções sob controle por meio da razão quando estão em rebeldia.

Quando um alpinista se assusta por uma queda e seu professor — fora de seu alcance, logo acima dele — pede que ele faça o que parece ser uma mudança impossível ou perigosa na sua pegada, não é a emoção que é a aliada do alpinista. Ele deve ter confiança, fé, em seu professor. Mais precisamente, quando ele estava seguro em terra firme, ao mensurar a inclinação e contar os passos, sua razão o informou se era possível ou não. Em pleno ar, o pânico tomou conta. Em situações como essa, o alpinista tem que ter confiança e fé em seu próprio julgamento e habilidade quando inspecionou o rochedo, antes de decidir escalar. A fé é a habilidade do cristão colocar de lado a tentação e sedução da dúvida irracional.

“A fé é quase sempre um processo movido pela emoção no qual um indivíduo se obriga a acreditar naquilo que quer que seja verdade”.

Tolice e bobagem. Eu devo solenemente assegurar a você que eu não me obrigo nem desejo que seja verdade que eu devo amar meus inimigos, dar a outra face, ou morrer uma morte de mártir cantando salmos de louvor. Minha vontade é que assim o faça por obediência a um Deus a quem amo e temo, e O obedeço nessas coisas porque sou digno de confiança e leal, como um escoteiro. Minha vontade não é que essas coisas sejam verdade.

Ninguém me pediu, mas, se eu pudesse escolher, eu preferiria muito mais que Odin tivesse sido o Deus Supremo, de modo a que eu pudesse estuprar e saquear de coração alegre.

Mas eu não criei a realidade na qual vivo. Ela me criou. Eu não escolhi qual Deus era real. Ele me escolheu. A única coisa que escolhi fazer foi, tão logo me foi revelado, muito contra minha vontade e inclinação, que Deus deve ser real, ser fiel ao meu juramento de filósofo e encarar esta verdade e nela acreditar não importando quão supostamente absurda ou desagradável, simplesmente porque é a verdade.

Nenhum ser racional tira sua conclusão sobre qual modelo de universo é mais útil e razoável e o adequa com base no seu desejo ou preferência pessoal. Desnecessário dizer, esta é uma crença nietzschiana, doutrina central do ateísmo, e assim o mero oposto do que Cristo nos ensina. Ele não disse “VOCÊ é o caminho, a verdade e a vida, baby”.

Quanto a chamá-la de um processo movido pela emoção, o Sr. Hicks sem dúvida achou muito difícil discutir comigo, e está inventando alguma pessoa emotiva com a qual discutir. Eu diria que suas emoções o estão fazendo procurar alguém que propôs um argumento diferente do meu, e um mais fácil de superar que o meu.

O Sr. Hicks gasta depois muitos parágrafos descrevendo algum tipo de pessoa movida pela emoção e intelectualmente desonesta que está engajada na caça, guerra, política e amor. Ele faz um apelo contra a tomada de decisões por razões emocionais.

Aqui não vejo nada com o que discordar, salvo pela sua afirmação absurda e não provada de que as conclusões teístas caem nesta categoria, enquanto a dos ateístas, não.

Por experiência pessoal, eu conheço grande número de ateístas irracionais que podem somente dar vacilantes razões emocionais para suas crenças. Por outro lado, posso contar nos dedos o número de ateístas racionais que podem argumentar em defesa do ateísmo, dos quais dois já se converteram ao catolicismo. (A lógica é nosso campo de trabalho e de batalha, pensadores livres, não o seu, e temos aqui vivido confortavelmente desde antes de Aquino. Por favor, não se esqueçam de quem inventou a Universidade ou a razão pela qual todos os silogismos e falácias lógicas possuem nomes latinos).

Seja como for, o argumento contra argumentos emocionais é irrelevante. Não propus nenhum tipo de argumento emocional. Minha referência ao amor a Deus e se apaixonar loucamente não eram uma afirmação de que um indivíduo deveria, ou poderia, ou seria obrigado a acreditar em Deus porque os cristãos se apaixonam por Ele. Realmente, conhecer Sua existência pareceria ser, pelo menos, uma despojada precondição mínima para uma intimidade amorosa.

Novamente, meu espaço aqui é muito pequeno para responder a argumentos focados em temas não relacionados à discussão em questão. Eu pediria ao Sr. Hicks no futuro para restringir seus vôos fantasiosos e aderir ao argumento que está sendo verdadeiramente levantado.

Sr. Hicks disse que a razão parece menos com uma espada ou escudo, como eu diria, e mais com uma ferramenta feita para nos moldar. Mas, como um escudo, visto que ele sequer chegou a direcionar um golpe contra mim, eu não tive motivos para levantá-lo. Como uma ferramenta, ele nada esculpiu até o momento. Ele definiu a epistemologia do Catolicismo de forma errada, citou Tertuliano incorretamente, citou-me incorretamente, definiu a palavra fé não meramente de forma errada mas tola. Eu estou no campo de batalha, armado e protegido, e estou vendo-o se esquivar no canto e fora do campo de batalha.

Vamos fingir que ele tenha completamente derrotado alguém que não dá outra razão a não ser emocional para a crença em Deus, ou que diz que a fé é um substituto usado para quando a razão fracassa. Isto me parece excelente. Mas esses argumentos não me interessam, porque eu não os propus, tampouco são parte da ortodoxia histórica do Cristianismo.

* * *

Artigo Original: Can the Existence of God be Proven (or At Least Be Made a Reasonable Hypothesis)? Visite Publicações em Português para ler os últimos artigos de Stephen Hicks e de religião em Português. Português Religion Series – Part 2 PDF.

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